O corpo pesa, disso eu sei desde criança. Em cada desejo por um
impossível voo, que cedo ou tarde resultava em uma queda. O remédio era pegar um pequeno espelho, posicioná-lo rente à minha barriga, apontá-lo para cima e andar pela casa olhando para o reflexo do teto. A notícia
do chão vinha nos esbarros, nos choques, em tropeços, mas havia o desejo
de transtornar o peso, suspender a gravidade e inventar uma gravidade própria. Pisar no teto era a vertigem conquistada. Anos depois eu li sobre o mito do pós-vida no egito
kemético, no qual todo aquele que morresse seria julgado pela deusa Maat no
Saguão das Duas Verdades. O julgamento consistiria em pesar o coração do julgado
usando a pena de um avestruz de contrapeso. Caso o coração pesasse mais que
essa pluma, a alma perderia a chance de reencarnar. Para os egípcios antigos o
critério de uma vida justa era vive-la com o coração sobrenaturalmente leve.
O coração leve, gosto de pensar, é também um coração frágil. Onde pulsa a
vida abunda a fragilidade. O momento do equilíbrio é instante da crise. Para
burlar o peso é preciso não de mais força, mais afirmação, mais consistência, é
preciso justo do contrário. É na
desistência de si, no sentido de colocar tudo que há de consistente à prova,
que a criação da existência tem vez. Em alguns de meus trabalhos percebo
recorrer esse desejo pela invenção da víscera. Desconfiar do visceral como
estrutura, desorganizá-lo. Desconfiar do visceral como puro caos, compreender a
superfície do profundo, sua pele, o seu desenho.
Quando trabalho com o corpo, percebo que meu interesse é pelo corpo
qualquer. O pobre, o maldito, o visitante, o errante
como imagens potentes do ser qualquer. Giorgio Agamben, no livro A
Comunidade que vem, faz o elogio do
ser qualquer e diferencia o qualquer do ‘não importa qual’ afirmando-o antes como
‘o ser tal que, de todo modo, importa’. Para Agamben o mais próprio de uma criatura
é a sua substituibilidade, aí residiria toda singularidade do comum. Esse é o
corpo qualquer que me interessa, isso que é pleno de singularidade justo no
ponto em que é absolutamente
substituível, já que não se trata aqui de afirmações identitárias, mas de
dispersões de formas de viver. O ser qualquer me interessa na medida em que não
se unifica na essência, mas que se dispersa na existência. Agamben afirma ainda que a singularidade do qualquer pode ser expressa na
noção de exemplo. O exemplo escapa da antinomia entre universal e particular. É uma singularidade entre outras e
está, porém, no lugar de cada uma delas, vale para todas. Em grego para-deigma é aquilo que se mostra
ao lado. Em alemão Bei-spiel, aquilo que joga ao lado. O lugar próprio do
exemplo é sempre ao lado de si mesmo, no espaço vazio em que se desdobra sua
vida inquantificável e inesquecível.
Recentemente realizei a performance
Verticordia, que consistiu em amarrar uma pedra de aproximadamente 400g no meu
peito e tentar boiar com ela no mar. 400g é o peso médio de um coração humano.
Verticordia é o epíteto de uma Vênus: aquela que coloca os corações em
vertigem. Nessa série de performances nas quais pretendo investigar os epítetos
da Vênus busco sair da noção mitológica para criar uma acepção afetiva de cada
um deles. Assim, na minha mitologia afetiva, Verticordia coloca os corações em
estado vertiginoso apenas porque ela mesma sabe sustentar o peso do coração
comum. Como na noção de exemplo para Agamben, amarrei o peso do coração ao lado
do meu. Dois corações justapostos, empilhados. Boiar era uma questão de deixar
o corpo inexplicavelmente leve, de não lutar, de desistir do meu próprio peso e
sustentar esse peso outro que era, a um só tempo, comum e impróprio.
Agamben diz: a
passagem da potência ao ato, da língua à fala, do comum ao próprio acontece a
cada vez nos dois sentidos segundo uma linha de cintilação alternante na qual
natureza comum e singularidade, potência e ato trocam de papéis e se penetram
reciprocamente. O ser que se gera nessa linha é o ser qualquer e a maneira na
qual ele passa do comum ao próprio e do próprio ao comum se chama uso – ou
seja, ethos.
O ser, para Agamben, portanto, é o modo de ser. Aqui o filósofo indica um
caminho comum entre ontologia e ética. Ser nunca precederia o modo como se é.
Vislumbro aqui uma ideia de arte como ética – que divergiria de arte como política – pela exaltação dos usos
de si como dignificação de todo ser. Inventar o próprio peso como uma ética.
Interessar-me pelo outro como a busca por aquilo que houvesse de mais singular
em mim. Meu constante interesse pelo impróprio como um olhar atento ao que me é
mais íntimo. Criar, não o faço com o estômago, faço com toda a pele
que não minha. Crio no instante silencioso entre uma batida do coração e a
outra.
Aqui, portanto,
penso que o estado atual da minha pesquisa poderia formulado a
partir do desejo pela afirmativa: equilibro o peso do coração comum.
Imagens da performance endereçada à fotografia Verticordia feita no começo de 2015 com colaboração da fotógrafa Daniela Paoliello.