Para Marina Abramovic
Se alguma coisa me repugnava, eu a transformava em objeto de estudo, forçando-me a retirar dela algum motivo de alegria. Em face de uma ocorrência imprevista ou quase desesperada, de uma emboscada ou de uma tempestade no mar, contanto que todas providências relativas aos outros fossem tomadas, aplicava-me a festejar o acaso e a aproveitar o que ele me trazia de inesperado, e a emboscada assim como a tempestade integravam-se, sem qualquer choque, nos meus planos ou nos meus sonhos. Mesmo no meio do meu pior desastre, vi o momento em que o esgotamento lhe subtraiu parte do seu horror quando o tornei meu, concordando em aceitá-lo. Se algum dia tiver de submeter-me à tortura – e a doença sem dúvida se encarregará disso -, não estou certo de manter por longo tempo a impassibilidade de um Trásea, mas terei pelo menos o recurso de me resignar a meus próprios gritos. Foi dessa maneira, com uma mistura de prudência e audácia, de submissão e revolta cuidadosamente calculadas, de extrema exigência e prudentes concessões, que acabei finalmente por aceitar-me a mim mesmo. (Marguerite Yourcenar)
Marina, teu corpo é Teresa, Anadyomene, Verticordia. É Judith, Lucrécia, Salomé. Estado bruto, ausência de linguagem, negação. Permanência; anulação e ânsia. Sem rosto, enfrenta espelhos e vulcões. Teu enigma: desprender-se no controle, controlar-se livremente. Tuas quedas premeditadas, quase me tocas. Teu corpo cansado, teu corpo corajoso. Eu pensei que tu ias chorar. Teus olhos me comovem. Encanta-me a violência que inventas. Aconchego-me no teu corpo em fuga, teu corpo mártir, leviano. Teu corpo devoto das vertigens. Teu ar te escapa pela boca, o que poderia ser um beijo é uma demorada morte. Tua boca faminta. Matas e morres mil vezes. Tua boca não mede, não narra. Tua boca faminta. Pela boca, encontras um martírio sem Deus, uma penitência íntima, um êxtase precário. Pela boca aprendes o desmedido das coisas, mastigas o incomensurável, te livras de toda compostura. É pela boca também que te ofereces silenciosa. Três meses de silêncio diante de mil olhos que te apalpam. Silenciosa, és acolhimento do dado, afirmação do presente. Tua boca silenciosa experimenta o insuportável, se expõe à exaustão, grito sem timbre de um assombro sem causas. Marina, teu silêncio não é docilidade, é arma. Combates a dor compactuando com a dor, desejando a dor, amor pela mácula, desejo de incontenção. Te esquivas do grito no interior do grito, te salvas do crime através do próprio crime. Tuas mãos limpam, machucam, tocam, salvam. Teus ossos flutuam, atravessados de outra gravidade. Duplicados, tu e teu lado de fora respiram juntos. Teu peito é laboriosa doação, erotismo com o todo, prazer junto à terra. Afronta, corre riscos, abre espaços. Virgin warrior heart, víscera intrusa, Sagrado Coração. Tuas pernas, penitência peregrina, tua dor é eremita. Pietá resignada, viajante, solitária, a espera da iluminação. Caminha para expurgar o mal. Caminha para desencontrar, para sobreviver. Trocar de pele. Ser tocada, ser flechada, ser pega pelo ponto que nunca cicatriza. Tua pele disponível, tua pele que queima, tua pele que cede, tua pele, tua profundeza.